Uma grande viagem interior, algumas exteriores

Primeiro dia

Já tinha ouvido falar muito do Jean François. Ele tinha sido a porta de entrada da Marie para o (autêntico) cicloturismo. Ele próprio cicloturista de 2a geração ( os pais dele foram cicloturistas durante a época de ouro do cicloturismo na França pós-guerra). Foi claro, com grande entusiasmo, que o recebemos aqui no nosso jardim à beira-mar plantado.

Apesar de não haver falta de bicicletas em Portugal, penso que ainda falta uma cultura de bicicleta mais profunda, com mais significado. Algo que vá para além de recordes, números, voltas a Portugal, corridas e afins. Não para diminuir o esforço que alguns atletas fazem, para atingir as suas metas, mas sim, para também mostrar que há um outro lado, em que as coisas fluem a um ritmo mais natural, poético e autêntico. No fundo, viajar exteriormente e interiormente.

Um bom começo…

Avião aterrado, começa a chatice: a roda de trás do Jean François tinha sido atropelada durante o transporte. Tanta coisa para embalar a bicicleta para depois acontecer isto. A pior parte: ele estava em Faro, com uma roda 650 b totalmente destruída, longe do centro da cidade. Enfim, ainda liguei aos meus camaradas do pedal de lá perto, mas nenhum deles tinham rodas 650b. Claro que eu tinha uma, guardadinha e igual à destruída. Solução : apanhar o primeiro comboio para Lisboa. Iria estragar a parte Sul da viagem. O plano original seria partir do Algarve, passar por Évora, Lisboa, Óbidos, Nazaré… mas nem sempre as coisas correm como queremos.

Dia seguinte, lá estava eu à espera dele, na estação de Entre-campos. O comboio chegou atrasado, claro. O Jean François salta do comboio com os seus jovens sessenta e tal anos, dá-me um grande abraço: amigos instantâneos. Tinha trazido uma roda nova, para não termos de arrastar a bicicleta até à loja. Para além da roda, o quadro também sofreu um bocado , mas nada de grave. Obrigado, aviões. Antes de começarmos a tratar da roda, é altura de ir almoçar. Escolhemos um restaurante tipo tasca, do que ainda vão resistindo em Lisboa. Parece outra viagem, esta no tempo. Ainda há sítios onde as contas se fazem na toalha de papel. E ainda bem.

E tudo correu bem.

O enraiamento da roda corre bem, claro. Aproveito para fazer um bocado da minha magia nos MAFAC RAID do Jean François. Preparo a bicicleta de viagem da Marie, aplicando as manetes confortáveis que ela gosta. Esta bicicleta foi um presente do Jean François. Uma bicicleta cheia de história e significado. Agarrei na minha mítica laranja e seguimos todos rumo a casa do Artur, fugindo da cidade, atravessando o parque de Monsanto. O caminho até ao bairro do Artur é um misto de caminhos de terra e estradas rodeadas de árvores. Surpreendente, como diz o Jean François. E é, pois a escassos metros, passa uma das mais movimentadas autoestradas nacionais. E nós ali, num trilho antigo, com centenas de anos, animados pela força das nossas pernas. Cansados, mas felizes. O dia termina com um excelente jantar em casa do Artur, preparado pela incansável Isabel.

Dia seguinte, o JF arranca para Évora. Apesar da chatice da roda, estávamos todos felizes. Como ele diz, não faz sentido a ficar a focar no problema, mas sim na solução melhor para o mesmo. Palavras sábias de quem já fez muitos quilómetros, por muitos países.

Segundo dia- Setúbal até Lisboa pelo caminho mais difícil, mas mais bonito.

A viagem do JF até Évora correu muito bem, como seria de esperar, depois de tanta chatice já passada. A variedade de paisagem no nosso pequeno país não deixa ninguém indiferente. Fomos bem cedinho para Setúbal: eu, Marie e Artur. O comboio garante-nos uma forma de escape rápida da cidade, trespassando tudo o que é a confusão dos subúrbios. O comboio desliza suavemente sobre a ponte sobre o Tejo. O dia, lindo. O Sol brilha e o rio Tejo é um enorme espelho. Apesar da viagem ser ainda longa, a conversa torna as coisas, mais uma vez, fluídas e naturais. Em Setúbal, temos tempo para andar um bocado a pé pelo centro antigo e ver as vistas.

Enquanto não chega o Ferry de Tróia que traz o J.F, entramos no belíssimo mercado antigo de Setúbal. Para quem gosta de peixe, este é o local indicado. Mas não só de peixe vive o mercado. Um arco iris de cores invade a nossa vista. Frutas, bolos, flores e claro, as típicas tascas a servirem copos de vinho. Ainda nem meio dia é. Suponho que para alguns, já são muitas horas em pé, a trabalhar.

Arrancamos direcção ao Ferry, que é já ali. Encontramos o J.F.

“Ça va?” “Très bien!” Como é que é possível estar mal ali? Fora umas torres um bocado grandes em Tróia, a paisagem é linda. Tempo agora para mais uma paragem no mercado. Outra pessoa que já estava muitas horas a pé era o J.F. Bolo comido, altura de começar a nossa subida, Arrábida acima. O calor, esse, não ia ajudar. A vantagem de pedalar em sítios tão bonitos é que vamos tão distraídos a pedalar que não notamos a subida. O esforço rítmico, o pedalar tipo respiração, faz do cicloturismo uma espécie de exercício de meditação. A viagem exterior, os sítios diferentes que visitamos, as pessoas que vamos conhecendo, as diferentes situações do dia a dia que vamos vivendo. A viagem interior, a forma como o esforço nos afecta e como os factores exteriores nos moldam no nosso intimo. A auto superação, o vencer o obstáculo em situações únicas e inesperadas.

A viagem interior pode ser descrita como a peregrinação mental que fazemos durante a viagem exterior. Como os factores externos nos afectam e como reagimos e pensamos. O que ganhamos e sentimos. O que perdemos. A experiência da paisagem. Um grande momento existencial .

Nesta altura, fazemos as grandes perguntas do Ser.

Aquele cantinho da Arrábida, com as suas conhecidas praias, é uma pérola na paisagem de Portugal. Infelizmente, uma cimenteira no meio de tal paisagem deixa qualquer um perplexo. Bem, se calhar, nem todos ficam perplexos. Razão para mais perplexidade é também a maneira como ainda se pode estacionar impunemente no meio da estrada. As praias são mínimas. E de difícil acesso. Nem todos as poderão visitar, como é lógico. Mas a lógica parece ser ainda a da total intrusão da mão humana sobre qualquer paisagem selvagem. Nada poderá ficar intocado pelo homem. Já há muito que o carreirinho de terra deixou de servir. Hoje em dia, só a estrada asfaltada – bem larga- serve. Qualquer esforço físico é razão para protesto. “ A Câmara tem de resolver”. Enquanto a Câmara resolve, ou não, a nossa subida continua. Quem passa de carro, tem ar condicionado mas provavelmente não tem tempo para ver o que nós vemos. O único azul das praias do Portinho e Galapos que se desvela entre pinheiros e arbustos. A areia clara e o mar, sem ondas. O dia, é perfeito. Escolhemos uma praia para almoçarmos. Enquanto um qualquer namorado enchia um daqueles enormes flamingos-bóia, discutíamos os pontos mais específicos do cicloturismo. Grupos maiores vs. Grupos restritos. Bicicletas modernas vs. Bicicletas antigas. A melhor maneira de levar tralha na bicicleta. Quais os melhores pneus, etc. Horas de conversa.

Azul único.
Antes da subida. Mal sabíamos…

Depois de pés banhados na praia, toca a continuar a subir. Depois da praia do Portinho é que as coisas apertaram verdadeiramente. A subida era extremamente íngreme. Calor horrível. Moscas. Enfim, mas pronto, nada que a pé não se fizesse. Chegados ao topo, a vista alargou. Vale a pena o esforço, o verdadeiro esforço, sem ajudas em demasia, para merecer estas vistas. Daqui, o caminho iria ser um bocado mais fácil. Na povoação seguinte parámos para comer um gelado ou dois e beber uma Coca Cola. Eu sei que faz mal, mas com o calor que estava, soube pela vida. E ainda faltavam uns 40 kms até Lisboa. QUARENTA.

Até à estrada nacional não-sei-quantas, o caminho até foi agradável. Pequenas subidas, pequenas descidas. Paisagem verde. Velocidade simpática. As coisas pioraram quando chegamos à única estrada da zona: a tal nacional não-sei-quantas, bem movimentada. Também era sexta-feira à tarde, mas mesmo assim… A solução era já esperada: ir pela mata da Apostiça. Já nossa (muito mal) conhecida, seria o “melhor” caminho para Lisboa. Melhor, porque pelo menos, não teríamos carros a passar por nós a velocidades pouco agradáveis. Momento engraçado: à entrada da Apostiça, encontramos dois turistas, de bicicleta. Vinham a pé. Uma das suas bicicletas de montanha de aluguer tinha tido um furo. A excelente empresa de aluguer nem uma câmara de ar lhes tinha deixado. Nem remendos. Nem bomba. Só uma daquelas garrafinhas de spray tipo espuma de barbear que nada fazem (excepto sujar). A sorte estava do lado deles. Tinha a câmara de ar que servia no pneu deles! Ficaram todos contentes, pois ainda queriam chegar a Sesimbra. Seguimos os nossos caminhos.

O caminho pela mata da Apostiça é bem simpático. Se não nos tivéssemos mais ou menos perdido. Surgem mais redes, mais cancelas que não estavam lá da ultima vez que lá tinha estado. Acho. Depois de uma pequena aventura de escalada, lá conseguimos encontrar o caminho certo, mesmo ao por do Sol. E ainda bem. Por um lado. Por outro lado, tínhamos uma hora para chegar à Trafaria para apanhar o barco para Belém. Confesso que preferia não ter feito aquela estrada, àquela hora. Os buracos ainda são os mesmos dos anos 80. As tascas ainda são as mesmas. A Costa da Caparica continua um pouco triste. Felizmente, conseguimos chegar ao barco a tempo. A viagem de ferry foi agradável e um fim perfeito para o dia. De Belém até casa do Artur foi um tirinho. “É só até aqueles semáforos”. Mas que raio, aqueles semáforos estão assim tão longe? Era a fome a falar. Mais um jantar feito pela Isa. São os melhores jantares: com amigos verdadeiros.

Aqueles que partilham connosco algo profundo.

Altura de descansar, pois no dia seguinte, iríamos passear por Lisboa. Passeio esse, felizmente, bem menos difícil.

A chegar a Belém, a bordo do Ferry mais barulhento do mundo™
Já em Lisboa.

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