Porque é que os ciclistas não cumprem regras de trânsito?
Esta foi, mais ou menos, a pergunta que foi feita num grupo do Facebook dedicado ao ciclismo urbano. Se a pergunta, por si só, foi feita num tom ambíguo, paternalista até, o que por si só me parece relativamente mau, pior é constatar o seguinte: em centenas de comentários, não se chegou a um consenso nem por parte dos ciclistas, havendo até, pontos de vista profundamente contraditórios. Reina o achismo, o argumento matrícula-seguro-capacete, o “respeito sempre todas as regras a 100%”, etc etc. Nenhuma desta linha de argumentação vai ao cerne da questão, tal como ignora problemas fundamentais:
-a actual estrutura rodoviária priviligia quase exclusivamente os automóveis, fornecendo aos utilizadores dos mesmos uma utilização desmesurada e egoísta do espaço público a preços muito baixos.
-No ano de 2017, morreram cerca de 500 pessoas nas estradas portuguesas. Causas das colisões (evitei o uso da palavra acidente): excesso de velocidade/velocidade excessiva e condução sob o efeito de alcóol. Carregar no acelerador ou beber mais uma fresquinha na tasca boçal não é um acidente: é negligência, para não usar outros adjectivos.
-A real e omnipresente sensação de insegurança por parte de TODOS os utilizadores da via pública. Seja no passeio, na ciclovia ou na estrada. Os grandes causadores desta insegurança? Os automobilistas e motociclistas, não os ciclistas.
Isto são factos.
E contra factos…
Por vezes, a GNR ou PSP faz um post que tem como temática os ciclistas. Quase sempre, esse post é inundado de comentadores profissionais do achismo, que misturam problemas,conceitos e opiniões numa bela sopa. Estranho é que quem clama pelo cumprimento das regras por parte dos ciclistas, raramente comenta nos outros posts da GNR e PSP que falam do excesso de velocidade por parte dos condutores e motociclistas. Mas basta ver quando surge uma notícia sobre operações Stop, radares,etc. Rapidamente surge o “caça à multa” ou o “deviam é preocupar-se com os criminosos a sério”. Como fazer sentido disto? Se nem os ciclistas se entendem, como vou esperar que os automobilistas se entendam com os ciclistas e peões?
Algumas pistas:
-O carro prometeu-nos liberdade. Com o passar do tempo, a liberdade deu lugar à prisão. Há sítios em Portugal nos quais não se consegue viver sem carro. Até para ir comprar comida é preciso o carro. E não falo de zonas rurais. Ou seja, o que dantes era a liberdade e facilidade de ir a todo lado, é hoje em dia, com a massificação do uso do automóvel, uma prisão com ar condicionado. As deslocações diárias são,para muitos, um inferno. Face à dimensão titânica do problema, muitos respondem “não posso fazer nada!” E, para além disso, a norma social é a condução a qualquer hora e para todo lado, de preferência com lugar à porta.
-…o que torna um ciclista em alguém com um comportamento minoritário, logo, repreensível e aberrante. Basta lembrar-me de quantas vezes me perguntaram se vim “até aqui” de bicicleta e que era maluco por o fazer.
-Em Portugal, é notória a ausência de reflexão. A falta constante de se colocar no lugar do outro. O pensar no bem estar dos outros. Os traços negativos só aumentam ao volante de um carro.
O condutor, que já se sente “preso” ao volante da sua prisão, irá reagir a qualquer alteração daquilo que acha expectável encontrar na estrada com maior agressividade.
Seja essa alteração um engarrafamento, a falta de estacionamento ilimitado, aumento de impostos relativos ao carro, crescentes limitações de circulação com o automóvel em centros urbanos, controlos policiais visando a segurança de todos,etc.
E claro, sem nos esquecermos dos ciclistas,que (irritantemente para o Zé automobilista) , não são afectados pelos engarrafamentos, falta de estacionamento, impostos e limitações de circulação. Resumindo: para o Zé automobilista, os ciclistas fazem o que querem e ainda por cima não pagam nada. Ou seja, por debaixo de tudo, há, entre outras coisas, um ressentimento.
-Alguns ciclistas, alinham neste pensamento e por isso dizem que cumprem a 100% o código. Cumprem porque acham que se o fizerem, estão a ser bons cidadãos. Isto claro, sempre esperando que os outros também o farão.
Também o faria (cumprir o código a 100%), se de facto as infraestruturas fossem feitas a pensar em todos e não só em alguns. E se houvesse uma fiscalização de facto efectiva que devolvesse o sentimento de segurança às estradas. E sobretudo, se não tivesse de conviver com gente profundamente inconsciente todos os dias, cada vez que pedalo numa estrada. Aqui está a resposta à questão. Os ciclistas não cumprem algumas regras porque acham que as regras não se aplicam a eles, pois todo o sistema não foi feito a pensar neles e sentem-se mais seguros assim. Ou melhor: os utilizadores principais do sistema (automobilistas) acham que só eles têm direito de usufruir do mesmo. E demonstram-no através da sua condução, pensando só neles. Manobras perigosas, excesso de velocidade , velocidade excessiva, uso do telemóvel ao volante, estacionamento onde calha, etc. O presenciamento constante de tudo isto aumenta a sensação de impunidade e de insegurança. Daí, mesmo que os ciclistas queiram jogar pelas regras. Sendo confrontados diariamente com o acima descrito, não admira que alguns sintam a necessidade, por razões de segurança, de “dobrarem” algumas regras.
…para o Futuro e para tentar resolver o problema:
– A diminuição da circulação automóvel individual nos grandes centros urbanos.
-Reconfiguração das nossas ruas para servirem sobretudo as pessoas e não um grande volume de automóveis circulando a velocidades mais ou menos altas.
-Aumento da fiscalização efectiva, com castigos fortes que reflectem de facto a gravidade das acções praticadas. Um carro tem um potencial de causar danos muito maiores do que uma bicicleta.
-A diminuição da sensação de insegurança constante nas nossas ruas trará mais utilizadores de bicicleta.
Serra da Estrela
Desde pequenos que o sabemos: o ponto mais alto de Portugal continental fica na Serra da Estrela. Dois mil metros de altitude. Na verdade, não são bem 2000 metros, mas fica lá bem perto. E, para quem sobe de bicicleta, não são uns metros a menos que vão fazer a diferença na sensação de termos conseguido fazer algo que nem todos fazem, nem que se se faz todos os dias.
Quando recentemente fui convidado a ir à cabana/retiro do Artur da Lisbon Cycling, algures pela Serra mais alta de Portugal, não pude deixar de dizer que não. Afinal de contas, não é todos os dias que subimos de bicicleta até à Torre. Sim, iria custar, mas o que é o cansaço quando se ganha paisagens e vistas fabulosas?
Começámos a nossa subida na aldeia de Unhais da Serra, uma localidade do lado da Covilhã. Sempre me disseram que começar em Manteigas era mais fácil, razão pela qual não comecei lá.
Já sabíamos mais ou menos o caminho, mas claro que não custa confirmar no GPS local: o grupo de homens sentados à beira da igreja local. Asseguraram-nos que a subida era fácil e que eram só 15 kms. Já sabendo o que a casa gasta, saímos preparados. Para aqueles que me estão sempre a perguntar o que levo dentro do saco, levo comida a sério (nada de barras energéticas) e roupa.
O nosso trajecto iria incluir uma secção de estrada em terra batida. Excelente! Vamos começar.
Uma coisa se entende rapidamente: o caminho é sempre,sempre a subir. Pela estrada que serpenteia montanha acima, rapidamente ganhamos altitude. Subindo a Nave de Santo António, reparamos que as casas tornam-se mais pequenas e as montanhas, que ao fundo pareciam pequenas, são agora enormes blocos maciços de granito e xisto. Uma coisa que nunca deixa de espantar é a dimensão titânica destes maciços de pedra, que irrompem, direcção ao céu.
À medida que continuamos a subida, é que nos vamos apercebendo ainda mais da dimensão da Serra – o seu tamanho parece aumentar a cada curva. Entra o jogo mental de não desistir: a paisagem ajuda a manter a força de vontade em cima. A cada pedalada ficamos mais perto do nosso objectivo.
Subir uma estrada de montanha deste calibre é um exercício de humildade: sentimos-nos mesmo pequenos.
Já na estrada de terra batida, tenho um furo. Aquele galho cheio de espinhos decidiu atravessar-se mesmo à frente da bicicleta. E para ajudar, a minha bomba de quadro desistiu de encher pneus. Felizmente tinha uma mini bomba de urgência que deu para continuar caminho até à nossa próxima paragem. O almoço. O saco veio cheio de queijo da serra, pão a sério e doce. Claro que a cafeteira também veio.
Até à Torre, ainda teríamos de subir mais. As últimas pedaladas são sempre as mais difíceis. Mais difícil é ver que a Torre e tudo o que o rodeia é feio. Um centro comercial terrível. Um parque de estacionamento ainda pior. Domingueiros com as suas dominguices. Mas não subimos até cá acima para ver coisas feias. Abstemo-nos destas vistas e concentramos-nos noutras. Cá de cima, podemos ver longe. Muito longe. Valeu a pena.
As montanhas sempre tiveram algo de mítico. Acima do plano da existência profana do dia a dia, o sagrado das alturas contrasta com o quotidiano. O ar é fresco e limpo. O vento frio corta. O céu, a nossos pés.