Um restauro inesperado

Na semana passada, o Corvo rumou a Sul em busca de praias mais quentes.

Quando passava férias, surgiu mais uma reparação a fazer. Desta vez foi uma IBA, já com cerca de 30 anos.  Componentes FAPRIL, travões LUSITO. Esta era completamente (pronto, em grande parte, digamos) portuguesa!

restauro IBA geral

Olhando à primeira vista para a bicicleta, pensei logo: esta vai ser fácil. Nem o espigão de selim, nem o avanço estavam calcinados no quadro (maravilha!). Não havia ferrugem em demasia. As peças estavam todas na bicicleta! Em principio, seria só trocar cabos, bichas, câmaras de ar e pneus. Em princípio.

...um bocadinho de ferrugem fica sempre bem...

Claro que não poderia ser assim tão simples. Ambos os cabos de  travão estavam presos às manetes de travão – uma situação inédita para mim. Foi uma daquelas situações em que devia ter ficado calado. “Espero que não chova” – começa a chover. Bem, para retirar o cabo de travão, foi necessário desmontar a manete toda e forçar a peça de alumínio de modo a conseguir tirar o cabo. Serve de lição: nas reparações ou restauros, o que pode parecer simples, pode não ser! Acabei por perder mais tempo a resolver o problema do cabo do que a reparar o resto da bicicleta.

Ultrapassado este colorido obstáculo, vinha o próximo. Encontrar quem vendesse cabos e bichas. Curiosamente, era mais fácil encontrar bicicletas de 7000 euros do que cabos de travão. Lá encontramos uma loja de motorizadas e bicicletas, daquelas que estão imutadas pelo tempo. Consegui inclusive comprar a bicha de cor cinzenta! 13 euros depois, saímos da loja com cabos de travão e mudanças, bicha, um par de calços de travão e duas câmaras de ar.

A montagem correu normalmente. As mudanças permaneceram afinadas durante 20 anos ( o  tempo que a bicicleta esteve parcialmente desmontada) . Um ponto a favor das mudanças não indexadas!

Os pneus vieram de outra loja, tendo recomendado uns mais altos e grossos do que os originais 700×23. Agora a IBA rola mais confortável com uns 700×25.

iba pneus

Iba travões

Trinta anos depois, esta IBA volta a rolar. Pode não ser a bicicleta melhor do mundo. Mas é isso que a torna encantadora : algo barato e popular, continua a poder ser reparado. As coisas eram feitas para durar! Basta agora montar os para-lamas e o porta bagagens e está pronta para mais umas décadas de serviço.

Motobecane – o que fazer?

Introdução

Num anterior artigo, falei de uma bicicleta Motobecane que tinha para recuperar.

motobecane vista geral

Vista geral da bicicleta. Faltam alguns componentes. Muito mal tratada pelo tempo…

 

Esta motobecane é uma bicicleta francesa, produzida em massa, provavelmente durante os anos 60. É  uma bicicleta simples, utilitária e sobretudo com uma qualidade estética invejável. Mas não agora, neste estado, pelo menos. A bicicleta chegou ás minhas mãos bastante mal tratada. Alguns componentes originais estavam ausentes e muitas das peças estavam cobertas de oxidação.

collage ferrugem

Podemos ver aqui a oxidação na zona aonde entra o espigão de selim, tubo superior e zona das ponteiras. Resumindo – vamos escolher uma cor nova!

Quando temos uma bicicleta nestas condições temos de fazer uma série de perguntas:

– quanto queremos gastar  ( tempo e dinheiro)

– como iremos usar a bicicleta ( pequenos passeios, uso diário, grau de exigência, etc)

– manter componentes originais ou renovar a bicicleta, mantendo apenas o “esqueleto”

Neste caso específico, decidi que iria manter apenas o esqueleto ( quadro, garfo, avanço, guiador, espição de selim). Considerei o facto das rodas estarem já bastante estragadas, oxidação nos aros, cubos velhos e impossibilidade de montar mudanças recentes. Ao trocarmos as rodas, transmissão e travões, estamos basicamente a “actualizar” a bicicleta. Esta actualização terá uns toques retro, como veremos depois. A vantagem de seguirmos este caminho é termos uma bicicleta mais robusta e uma maior acessibilidade a material em 2a mão a baixos preços e ao mesmo tempo recentes.

collage desviador

Os aros cromados completamente oxidados… e o desviador vai desviado para outro projecto.

Um ponto importante e prático a reter: nestas bicicletas antigas, é muito provável haverem parafusos calcinados. Geralmente consegue-se contornar estes problemas. Existem casos em que as peças calcinadas podem inviabilizar o resto da bicicleta, ou tornar mais difícil o seu restauro. Estou a falar do avanço e espigão de selim. Nesta bicicleta tive sorte pois tanto o espigão de selim como o avanço saíram bem.

A decisão de repintar e trocar muitas peças será de cada um. Se esta bicicleta estivesse em boas condições, nunca a iria decapar e pinta-la de novo. E manteria os componentes originais.

Próxima parte: pintura – decapar ou pintar por cima?

Porquê recuperar?

Escolhemos o caminho, o de cuidadosamente desenterrar objectos do passado, porque acreditamos que a Terra e seus recursos são demasiado preciosos para serem esbanjados no fabrico de infinitos bens materiais. A opção estética também tem o seu peso. Nada vence as finas linhas de uma bicicleta italiana de aço, ou uma René Hersé francesa clássica, quase toda feita á mão. O que nos traz ao seguinte ponto: é óbvio que nem tudo no passado seria feito á mão. Mas a verdade é que haveria sem dúvida um muito maior envolvimento de mão humana. Ou seja, quando salvamos uma velha bicicleta, máquina de escrever ou caneta de tinta permanente, há anos esquecida numa qualquer gaveta, não só nos estamos a revoltar contra esta sociedade de consumo descontrolado como também poupamos os preciosos recursos naturais. Acima de tudo, mantemos vivo uma ligação com os nossos antepassados e seu modo de vida. Ao continuarmos a usar algo que estaria destinado á sucata, estamos também a respeitar o trabalho de dezenas de trabalhadores que, com as suas mãos, transformaram os tubos de aço em perfeitos e elegantes quadros de bicicleta ou que dobraram a chapa fina e juntaram as dezenas de peças móveis que agora são a máquina de escrever em que este artigo foi escrito.

rene herse

Um exemplo clássico de uma René Hersé. Intemporal!

Recuperar e restaurar é também o caminho mais difícil. Exige paciência e dedicação. Exige conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, muitas vezes adquiridos através de tentativa e erro. Ao escolhermos o caminho mais difícil, estamos de certeza a agir em não conformidade com as massas consumidoras. Estamos sim  a caminhar para uma existência mais livre, pois o caminho que seguimos é o nosso. Não comprámos este modo de vida num qualquer centro comercial, mas sim descobrimo-lo em inúmeras feiras de velharias, sotãos e garagens. Sucateiros e caixotes do lixo.

Até aonde cada um decide levar este modo de vida será escolha individual. Não devemos viver para os bens materiais. Mas, alguns bens materiais fazem parte da nossa vida, a um nível emocional. Logo, faz todo o sentido em preservar estes mesmos objectos. E há bens materiais que tornam a vida bem mais interessante e… linda!

rene herse final